os pássaros e eu
1.
a regra é clara: ouço passarinhos, então paro. com um certo medo-desejo de parecer uma completa idiota, ainda assim. é só que em dado momento me ocorreu que é escroto saber identificar a pior música do momento na primeira nota mas não o som de ao menos um número de passarinhos. não que eu saiba, mas eu tento. como quase tudo, eu começo pela teimosia e depois descubro o que tem por baixo. acho ruim, é difícil encontrar o desejo por baixo da teimosia, é como tentar tirar areia da carne debaixo das unhas. perigando parecer uma completa idiota, ainda assim. um ímpeto de performatividade que pode, com sorte, triscar numa coisa de carne e osso.
2.
quando eu me mudei pra Brasília e meu vizinho tinha um parque de diversões pra passarinhos na varanda, então todos os dias às 9h e depois às 17h uma enxurrada de periquitos verdes pousavam no parapeito ao lado e eu ficava assistindo a alguns metros de distância eles se deliciarem com alpistes e sementes de girassol.
quando, depois disso, meus planetas em áries me fizeram orbitar a certeza de que eu precisava construir um parque de diversões no mínimo apto a competir, claro, eu não precisava roubar todos os passarinhos, mas ao menos uma partezinha mais afeita à simplicidade poderia preferir os meus singelos aparatos lúdicos e não os do vizinho.
construí um playground com apenas água e alguns pedaços de mamão, e pus a insistência em prática. os pássaros demoram a perceber a mudança, e podem muito bem não notar. eles valorizam mais a insistência do que o talento nato, eu entendo eles. atrair a atenção deles tem um pouco de fé e um pouco de extravagância. cortei o pedaço de mamão maior hoje, nada. peguei o mamão mais laranja de todos, não é possível. alguns mamões ressecaram e foram pro lixo. até que, enfim.
quase todos os dias eu punha as frutinhas no parapeito e me escondia por trás da película de vidro pra esperar eles virem. (eu tinha que me esconder; eles apreciavam a comida, mas não a minha presença. eu entendo eles, brincadeira, rs) eles sempre vinham, uns dois ou três. poucos pedacinhos de mamão contando pequenas vitórias diárias contra quilos de alpiste, quem diria. sempre tem alguém pra se encantar pelo azarão.
3.
eu paro e olho, mesmo que às vezes não veja nada. perco uns minutos, é verdade, e eu já vivo atrasada. no final ninguém vai lembrar dos minutos. eu paro porque uma vez eu ouvi asas batendo e era um tucano bem na minha frente, num estacionamento. e eu fiquei bem paradinha assistindo ele caminhar por cima do carro, e uma menina que eu não conhecia me viu parada e parou também, e ficamos nós duas olhando em silêncio. no final, quando o tucano voou, ela seguiu o caminho dela, eu segui o meu, tchau, boa semana, tchau pra você também, e é só.
4.
meus amigos me chamam por um apelido de pássaro. o apelido é por causa do meu sobrenome e veio antes de fazermos a conexão com o pássaro, então não tem nada a ver. mas um dodô é um pássaro que já foi extinto há centenas de anos e nunca aprendeu a voar. “e não tinha medo de seres humanos, pois evoluiu isolado e sem predadores naturais”, completou a wikipedia. talvez tenha tudo a ver. não tenho medo dos seres humanos (será?), mas invejo os pares que sabem voar.
5.
o desejo é de estabilidade. uma vez alguém citou um estudo sobre o efeito tranquilizador que o canto dos passarinhos tem nas pessoas: se estamos ouvindo passarinhos cantando, então está tudo bem, na medida do possível. melhor que alprazolam, com certeza. mas nessa cidade os passarinhos cantam às 3 da manhã, e eu até evito pensar nisso, porque é uma coisa meio bizarra de conceber, mas eu já escutei. não vi nada, mas escutei.
6.
esse texto me fugiu enquanto eu ouvi um canto hoje, caminhando entre uma coisa e outra. já me acostumei a perder os textos, muitos vão embora e não voltam mais. mas esse voltou, voando, como se nada. a regra é a mesma: uma vez pela manhã, depois de novo no fim do dia. talvez por isso eu esteja pensando em passarinhos.

